domingo, 8 de janeiro de 2012

Palavras para quê?: Os Emigrantes, de Shaun Tan

Apesar da crise, 2011 foi um bom ano no que se refere à edição em português de obras fundamentais que permaneciam inéditas no nosso país há demasiado tempo. Para além de “Blankets”, de Craig Thompson, que será brevemente objecto de análise neste espaço, foi também lançado “The Arrival”, o mais emblemático trabalho de Shaun Tan, editado em Portugal pela Kalandraka, com o título “Emigrantes”.
Editado originalmente em 2006 e vencedor do Prémio da Melhor Banda Desenhada no Festival de Angoulême de 2007, “Emigrantes” é uma obra difícil de classificar, uma história sem palavras, na fronteira entre a Banda Desenhada e o livro ilustrado, supostamente dirigido a um público infantil, mas que possui vários níveis de leitura e é uma fabulosa metáfora sobre o drama de quem tem de deixar a sua terra para procurar uma vida melhor noutro lugar, com uma língua e uma cultura diferentes. No fundo, um cenário que nestes tempos difíceis se depara a muitos (demasiados) portugueses…
Inspirando-se na própria experiência do seu pai, que emigrou da Malásia para a Austrália, misturando-a com histórias e imagens dos emigrantes europeus que chegaram aos Estados Unidos para fugir à fome e à guerra, na primeira metade do século XX, Tan constrói uma belíssima fábula, onde as palavras são supérfluas e a comunicação se faz através do desenho, com os desenhos que o anónimo protagonista desta história utiliza para comunicar com os habitantes do país para onde emigrou, a funcionarem como espelho da comunicação de Shaun Tan com os leitores.
Apesar dos elementos fantásticos, tanto arquitectónicos, como animais, e uso de símbolos que não correspondem a nenhuma linguagem conhecida, é fácil para o leitor estabelecer uma ligação com a realidade concreta dos judeus fugidos ao nazismo em finais dos anos 30, ou dos emigrantes irlandeses e italianos que chegavam a Nova Iorque de barco, tendo a Estátua da Liberdade (aqui substituída por duas estátuas que se cumprimentam) a recebê-los. O tom sépia usado nos (fabulosos) desenhos de Shaun Tan, que remete para as fotografias amarelecidas pelo tempo, também contribui para essa identificação.
Além de ser um livro belíssimo, maravilhosamente desenhado a grafite, “Emigrantes” é também um belo exemplo de como é possível contar uma história complexa sem palavras. Veja-se a imagem que escolhi para ilustrar este texto, em que o emigrante ao abrir a mala, vê não as roupas que lá estão, mas a família que deixou para traz. Em termos narrativos, Shaun Tan também dá cartas alternando imagens espectaculares de dupla página, ou página inteira, com pequenos quadrados cheios de pormenores, criando diferentes ritmos de leitura.
Lido “Emigrantes”, há que descobrir outros trabalhos de Tan, também editados em Portugal, como “A Árvore Vermelha” (também pela Kalandraka) ou “Contos dos Suburbios”, editado pela Contraponto, com a capa invertida em relação à edição original, sem que se perceba muito bem porquê…
Agora, só falta editar em português o fabuloso “Lost Thing”, cuja adaptação cinematográfica valeu a Shaun Tan o Óscar de Hollywood para a melhor curta de animação em 2011.
(“Emigrantes”, de Shaun Tan, Kalandraka,136 pags, 22 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 7/01/2012

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